domingo, 8 de junho de 2008

Resenha do livro “É isto um homem?”, de Primo Levi

Neste livro, Primo Levi se propõe não a fazer um relato das barbaridades cometidas nos campos de concentração na época do Holocausto, como tantos já foram feitos até o dia de hoje; mas sim a fazer uma análise psicológica da situação, perscrutando o que se passava na mente dos prisioneiros, tão duramente humilhados e forçados a trabalhos pesadíssimos, que se tornavam desumanizados.

O campo não é mostrado como não como um local repleto de barbaridades, mas como uma experiência que desnuda os aspectos mais profundos da psique humana.

“Fechem-se entre cercas de arame farpado milhares de indivíduos, diferentes quanto à idade, condição, origem, língua, cultura e hábitos, e ali submetam-nos a uma rotina constante, controlada, idêntica para todos e aquém de todas as necessidades; nenhum pesquisador poderia estabelecer um sistema mais rígido para verificar o que é congênito e o que é adquirido no comportamento do animal-homem frente à luta pela vida” (p. 88)

O livro é inteiramente focado nos conflitos psicológicos pelos quais passavam os prisioneiros.

O primeiro conflito mostrado é aquele ligado às tentativas de desumanização dos prisioneiros empreendidas pelas autoridades do Campo.A desumanização era um dos principais fantasmas que rondavam os prisioneiros de Auschwitz, além da fome,do esgotamento,das doenças,e do medo de ser escolhido em um das “seleções” periódicas dos prisioneiros que seriam mortos em Birkenau,para aliviar a superlotação do campo.Ao chegarem nos campos, os prisioneiros (doravante chamados de Häftlinge) tinham suas roupas e todos os pertences levados, seus cabelos e barbas raspados, e recebiam um uniforme padrão; a partir de então passavam a levar uma vida sem nenhum tipo de individualidade onde tudo era coletivo e todos eram tratados como animais.De acordo com Levi, após todo este processo e mais algum tempo de desgaste pelo trabalho, passava a ser impossível dizer até mesmo a idade de um prisioneiro. “Tem trinta anos, porém, assim como cada um de nós, poderia aparentar entre dezessete e cinqüenta”, diz sobre um deles.

No entanto, ironicamente eram justamente aqueles prisioneiros que não se deixavam levar por esta animalização que tinham mais chances de conseguir sobreviver por mais tempo.Levi utiliza um episódio ocorrido nos lavatórios do Campo para retratar este fato. Após uma semana no capo, encontra um companheiro de Bloco lavando-se com energia.Questiona o porquê deste ato, já que em meia hora de trabalho todos estariam sujos de novo, e lavar-se não faria ninguém viver mais, possivelmente até menos,pois é uma perda de energia.O companheiro de Levi lhe passa um sermão

Limpos e aparentando saúde, os prisioneiros tinham menos chances de ser selecionados para as câmaras de gás, e mais chances de agradar algum proeminente do campo, conseguindo assim melhores postos de trabalho.Aqueles que se deixavam levar, e abatiam-se e enfraqueciam eram chamados de muselmann, ou muçulmanos, e eram em geral aqueles que adoeciam e morriam ou eram selecionados para a morte pelo gás.Levi diz que era um desses muselmann, e conseguiu sobreviver aos horrores do Holocausto devido a três motivos de pura sorte.O primeiro foi ter sido aprisionado pelos nazistas já no ano de 1944, quando, por falta de mão de obra, os alemães já haviam se decidido a prolongar a vida útil dos prisioneiros, melhorando ligeiramente suas condições de vida, e diminuindo a constância das execuções arbitrárias.O segundo foi ser possuidor de um diploma em Química, o que possibilitou que, após mais de um ano de trabalhos forçados, em condições nas quais não suportaria outro inverno, fosse convocado a trabalhar no laboratório recém aberto no campo, salvaguardando-o do frio intenso e das privações que fizeram com que vários de seus companheiros perecessem.O terceiro e último foi estar internado com escarlatina na enfermaria do campo na ocasião de sua evacuação, sendo deixado para trás junto com outros doentes á mercê dos russos, que possibilitaram sua cura.A grande maioria dos prisioneiros que deixaram o campo juntamente com os SS, simplesmente desapareceu durantes o percurso.

Outro dos conflitos mostrados se liga à inversão de valores (ou a falta deles) ocorrida no Campo, principalmente no capítulo “Aquém do bem e do mal”.Neste capítulo é explicitado como delitos como roubos eram parte importante da vida no Campo.Sem recorrer a este método, era impossível conseguir alguns objetos de primeira necessidade, como colheres para comer a sopa quase líquida que era alimentação diária dos prisioneiros.Como conseqüência dos roubos, havia também um alto nível de contrabando, sobretudo entre os prisioneiros do Campo e os trabalhadores externos da fábrica.Este contrabando era expressamente proibido pelo Regulamento do Campo resultando em punições tanto para o Häftling quanto para o trabalhador envolvido.No entanto, era altamente incentivado pelos SS, enquanto o roubo no campo, severamente reprimido por estes, era uma operação normal para os civis, numa clara amostra da inversão de valores existente.

“Em conclusão: o roubo na fábrica, punido pelas autoridades civis, é autorizado e incentivado pelos SS; o roubo no Campo, severamente reprimido pelos SS, é considerado pelos civis como operação normal de troca; o roubo entre Häftlinge, em geral, é punido, mas a punição toca, com igual gravidade, tanto ao ladrão quanto à vítima. Desejaríamos, agora, convidar o leitor a meditar sobre o significado que podiam ter para nós, dentro do Campo, as velhas palavras “bem” e “mal”, “certo” e “errado”. Que cada qual julgue, na base do quadro que retratamos e dos exemplos que relatamos, o quanto, de nosso mundo moral comum, poderia subsistir aquém dos arames farpados.” (p. 87)

No entanto, mesmo com todos estes conflitos, os prisioneiros precisavam pensar em sobreviver. Este ponto se liga com a principal teoria por detrás do livro, que diz que “a ação humana só pode ser julgada individualmente, caso a caso”. Esta mesma teoria que faz com que Levi não julgue os oficiais nazistas como um todo de bárbaros assassinos, também é utilizada em relação aos próprios prisioneiros.

Dentro do Campo, cada homem era o responsável pela sua própria salvação.Para isso, era preciso adequar-se à vida no campo. Isso muitas vezes significava ser cruel com os outros prisioneiros, conseguindo assim um nível de vida notadamente melhor do que dos demais.Este era o caso doa kapos, prisioneiros proeminentes que eram designados pelos SS como chefes dos blocos onde os prisioneiros dormiam, sendo muitas vezes os principais responsáveis pela ordem do campo e pelos castigos que a quebra desta ordem acarretavam.

Inclusive, Levi mostra que apenas lamentar-se era a pior coisa que um prisioneiro de Auschwitz devia fazer se quisesse sobreviver.No Campo, cada homem era o responsável pela sua própria salvação, e se adequar ao sistema vigente, e não se deixar abalar pela desumanização dos prisioneiros que era o principal objetivo do Campo era o melhor modo de conseguir sobreviver àquela experiência.Isto é bem mostrado no capítulo entitulado “Os submersos e os salvos”, no qual Levi analisa os casos de quatro prisioneiros que, por seus talentos no trabalho ou por suas habilidades pessoais, conseguiram permanecer no Campo sem sofrer demasiadamente.Assim, é mostrado que nem todos nos campo eram apenas vítimas desprotegidas, alguns chegando a serem mais cruéis que os próprios oficiais da SS.

Outro problema exposto por é o da memória dos acontecimentos dentro do Campo. Em vários trechos e comentado que o que acontecia dentro do campo não era para os olhos humanos verem, não era para ser sabido.No capítulo “As nossas noites”, Levi expões que era muito comum entre os prisioneiros sonhar que estavam de volta as casas, cercados por seus entes queridos, contando o que havia acontecido no ambiente do campo; mas sem que ninguém parecesse ouvi-los.

Levi põe em voga se a questão que muitos teriam, se realmente conviria que desta situação humana restasse alguma memória.Responde a esta pergunta com um sim, argumentando sobre a importância desta experiência.

“Estamos convencidos de que nenhuma experiência humana é vazia de conteúdo, de que todas merecem ser analisadas; de que se podem extrair valores fundamentais (ainda que nem sempre positivos) desse mundo particular que estamos descrevendo.Desejaríamos chamar a atenção sobre o fato de que o Campo foi também (e marcadamente) uma notável experiência biológica e social” (p.88)

Concluindo, pode-se dizer que o livro é importante por ir além da ótica geral utilizada pelos estudos sobre o Holocausto, que muitas vezes pecam ao ver os acontecimentos de forma superficial e simplista.Levi,pelo contrário, leva a interpretação dos acontecimentos a um outro nível., que apenas quem vivenciou aquelas situações poderia levar.É um livro essencial para o entendimento do Holocausto do ponto de vista do dia-a-dia dentro do Campo.

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